sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Sobre o paralelismo semântico

Um leitor me escreveu pedindo a análise da frase: “Fez duas cirurgias: uma em São Paulo, outra no ouvido”. Ele diz não ter ficado satisfeito com a explicação de um professor: “A aula (dele) envolvia advérbios, não a frase em si”, explica.
Ocorre na frase uma quebra de paralelismo semântico. Essa quebra consiste em coordenar termos de diferentes campos lexicais. A referência a São Paulo faz esperar que se mencione outro lugar, e não o órgão operado.
      A quebra do paralelismo semântico caracteriza a chamada enumeração caótica, que tem muitas vezes efeito humorístico. Um exemplo desse tipo de quebra é esta famosa passagem de Machado de Assis: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de reis”.
Espera-se que, após a conjunção “e”, complemente-se a referência temporal em semanas ou dias; em vez disso o narrador menciona uma quantia em dinheiro, o que à primeira vista parece um despropósito. Logo se percebe o alcance estilístico da ruptura; a menção ao dinheiro sugere que Marcela ficou com Brás Cubas por interesse, e não por amor. O resultado é bem melhor do que se Machado simplesmente escrevesse: “Marcela amou-me durante seis meses. Nesse período, levou-me onze contos de réis.” Aqui temos apenas a informação, sem a surpresa e a graça promovidas pelo estilo.   
Efeito semelhante ao de Machado obtém Drummond quando escreve, visando menos ao humor do que à tradução do desalento existencial: “Perdi o bonde e a esperança...”. A coordenação entre um termo do campo lexical dos transportes e outro do campo dos sentimentos promove uma ruptura que amplia o alcance da perda. Não se trata apenas da fortuita perda de um meio de transporte; o que se perdeu foi algo que assegura o percurso da própria vida. Sem esperança não se vai a lugar nenhum.  
         Não é qualquer ruptura semântica que promove o efeito estilístico. Muitas vezes a quebra não passa de uma falha estrutural. A frase enviada pelo leitor, por exemplo, é mais lacunosa do que caótica (no sentido que comentamos aqui). O destinatário fica sem saber qual cirurgia foi feita em são Paulo e onde ocorreu a cirurgia que se fez no ouvido. Não há suplemento, mas carência de informação. Tampouco transparece alguma intenção crítica, ou jocosa, promovida pelo jogo dos significantes.
          Outro seria o efeito se o autor tivesse escrito, por exemplo: “O cirurgião cortou-me o ouvido e o bolso”, sugerindo que o médico cobrou caro pela operação. O emprego metonímico de “bolso” (no lugar de dinheiro) quebraria o paralelismo mas encaminharia o leitor para um novo plano interpretativo, enriquecendo semanticamente a informação. 

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