terça-feira, 25 de outubro de 2016

O tempo na redação do Enem

          Uma dúvida comum aos que vão fazer o Enem é se devem começar a responder a prova pela produção textual ou pelas questões objetivas. E caso optem pela primeira possibilidade, quanto tempo dedicar à redação? A resposta varia de acordo com cada pessoa, mas o recomendável é começar pela questão discursiva. Além de valer mais pontos, a redação exige um maior trabalho intelectual; preencher as trinta linhas (ou um número aproximado) vai muito além de marcar xis. Com prática, pode-se desempenhar essa tarefa em pouco mais de uma hora. Essa é a faixa de tempo que os alunos gastam quando fazem os vestibulares simulados.
        Alguns se ressentem de escrever sob pressão, mas as notas que obtêm em classe não são diferentes das obtidas em casa. Às vezes são até melhores. Uma hipótese para explicar isso é que na classe eles ficam mais concentrados. Geralmente o tempo que se gasta “a mais” na elaboração do texto deve-se a atitudes inúteis, como reler períodos, retocar demais as frases, e não há como fazer isso num simulado com hora para terminar (e com o professor em cima, de olho). Uma boa dica é reler os parágrafos quando já estiverem prontos. Depois ler a redação por inteiro e mudar o que for conveniente.
         O controle do tempo é importante na redação porque os textos das questões objetivas são longos; retardar-se demais na escrita compromete a atenção que se deve dar a eles. Por outro lado, é possível ganhar tempo na resposta a essas questões caso se atente para determinadas especificidades que apresentam. Ao contrário do que ocorre em outros vestibulares, que nesse tipo de questionamento enfatizam o “conteúdo”, no Enem comumente se abordam tópicos formais ou pragmáticos (procedimentos ou intenções do autor, marcas linguísticas, níveis e funções da linguagem).
           Muitas vezes a resposta é percebida logo na primeira linha do texto de suporte, na qual se evidencia, por exemplo, uma marca de registro linguístico (formal, coloquial, regional). Outras vezes ela está nas próprias alternativas, que definem erradamente determinados conceitos (como os referentes às funções da linguagem). Há casos em que está num detalhe semântico; quem soubesse que um dos sinônimos de “matriz” é “base” acertaria sem muito trabalho a questão 113 do Enem 2013. O candidato deveria apontar a alternativa “e”, segundo a qual a escrita contribui para a evolução tecnológica por “fornecer base essencial para o progresso das tecnologias de comunicação e informação”. Constava no suporte que “a impressão (escrita) é a matriz que deflagrou todo esse processo educacional eletrônico”. Isso mostra que a atenção na leitura é fundamental.
             Elaborar um roteiro reduz bastante o tempo que se leva para produzir o texto. É melhor gastar cerca de meia hora fazendo um esquema e depois ir em frente, sem interrupções, do que ficar mudando o rumo do que se quer dizer. Também é útil, para escrever com presteza, usar um vocabulário transparente e objetivo. Hesitar demais entre um ou outro termo compromete o fluxo do pensamento e, obviamente, retarda a elaboração textual.      
        Outra forma de ganhar tempo é procurar compreender bem o tema, e para isso conta bastante a leitura cuidadosa dos textos motivadores. A adequada percepção do que a Banca pede ajuda a delinear o ponto de vista e escolher o foco, ou seja, o fio expositivo. A partir daí fica fácil selecionar argumentos, estabelecer relações entre os parágrafos e apresentar as propostas de intervenção social.
          Se quiser terminar logo seu texto, não se apresse. Lembre-se de que os minutos dedicados à reflexão jamais são perdidos. Procure antecipar mentalmente o que vai escrever; por meio de pequenos tópicos (frases ou fragmentos de frase), faça um inventário das ideias a serem desenvolvidas e só redija a versão final quando tiver um arcabouço (ou seja, um esqueleto) completo do texto. Poucos têm paciência para fazer isso, mas os que fazem são depois premiados com uma fácil trilha a percorrer. E, sobretudo, com um precioso ganho de tempo. 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Pleonasmos

         Pleonasmo é o excesso de palavras para indicar uma mesma ideia. Constitui um vício quando não reforça a expressão. Exemplo conhecido de reforço é a locução “vi com meus próprios olhos”, em que o adjunto adverbial enfatiza a veracidade do que se constatou. Expressivos são também os “epítetos de natureza”, que realçam atributos naturais de seres ou objetos: “mar salgado”, noite escura, gelo frio, “cadáver mudo” etc.
    Costuma-se, na área do pleonasmo, distinguir a tautologia da redundância. A tautologia consiste em dizer a mesma coisa com outras palavras. Numa redação sobre o desafio de convier com as diferenças, um de nossos alunos escreveu: “Conviver com o outro é um desafio para todos nós, pois cada indivíduo possui hábitos e opiniões diferentes, que não são iguais aos nossos.” As partes em negrito são tautológicas porque repetem o que está semanticamente expresso no verbo “conviver” e no adjetivo “diferentes”.
          Seguem outros exemplos, também retirados de redações:     
         - “O excesso de poder nas mãos dos traficantes faz com que a polícia declare uma guerra bélica contra eles, afetando civis e militares.”
      - “A dependência à opinião dos outros resulta em baixa autoestima, submissão passiva às vontades do outro e dificuldade em expressar sua opinião.”
         - “As pessoas colocam o trabalho como primeira prioridade na vida.”
        Em casos assim não há como falar em “epíteto de natureza”; a intensificação decorre, basicamente, do desconhecimento do sentido etimológico. Os autores ignoram que os substantivos “guerra”, “submissão” e “prioridade” contêm em seus radicais a ideia presente nos determinantes “bélica”, “passiva” e “primeira”. Pode-se argumentar quanto ao terceiro exemplo que existe uma hierarquia de prioridades, e que o aluno se referiu à mais importante. O contexto da redação, no entanto, mostrava não ser esse o caso.
        A redundância se distingue da tautologia por ser a “repetição de pormenores já implícitos em declaração prévia” (Othon M. Garcia, Comunicação em prosa moderna, p. 319). Exemplo: “De acordo com o pesquisador britânico Richard Lynn, os ateus são mais inteligentes do que os religiosos e possuem o quociente de inteligência (QI) significativamente mais alto.” O que se acrescenta sobre a maior inteligência dos ateus é desnecessário, pois está contido na informação anterior.
       Os exemplos dados até agora são de pleonasmos lexicais. Pode haver também repetições de vocábulos que não pertencem ao léxico; são os pleonasmos gramaticais: “Maria Fernanda Cândido está grávida do seu segundo filho”; “A traição ocorre exclusivamente em virtude da nossa vontade, e não dos aspectos da natureza humana”. Ambiguidade à parte, não há necessidade de pronome possessivo para indicar a gravidez da própria atriz. Da mesma forma, é supérfluo repetir o advérbio “só” por meio de “exclusivamente”; ambos significam a mesma coisa.
       Um conhecido pleonasmo gramatical é o objeto direto pleonástico: “A vida, o vento a levou”. O pronome oblíquo “a” repete o substantivo “vida”. Trata-se de pleonasmo porque o pronome, pela forma como se apresenta, pode exercer função sintática idêntica à do termo antecipado (no caso, a de objeto direto). Se o pronome viesse antecedido por um conectivo não poderia exercer tal função, o que determinaria uma ruptura na cadeia sintática (por exemplo: “A vida, não me importo com ela”). A esse tipo de quebra dá-se o nome de anacoluto.
        Merecem atenção os pleonasmos gramaticais que envolvem pronomes e advérbios relativos, em construções do tipo: 
        - “Vou dizer o nome das moças que meu amigo as viu no cinema.”
       - “Algumas pessoas poderão passar longos períodos de tempo sem encontrar uma pessoa com quem valha a pena se relacionar com ela.”
        - “Sua mente habita um mundo imaginário, onde coexistem ele e o mundo.”
     Os termos em negrito repetem os conteúdos expressos, respectivamente, no pronome “que”, no conjunto “com quem” (com a qual) e no advérbio relativo “onde”. Construções como essas devem ser a todo custo evitadas. Além de não terem valor estilístico, revelam deficiência na estruturação sintática.


sábado, 8 de outubro de 2016

O risco das definições

          Definir é explicar o significado de um termo. Na perspectiva textual, pode ser um meio de introduzir o tema. A definição serve para suprir uma provisória falta de ideias. Não sabe como começar a redação? Comece definindo.
           Um aluno começou desta forma um texto sobre a rejeição aos homossexuais: “Homofobia é a aversão que se tem pelas pessoas do mesmo sexo”. Outro iniciou uma redação sobre o fanatismo religioso, escrevendo: “O fanatismo é a adesão cega, irracional, a determinada doutrina”. As definições são precisas, como se vê. A partir daí novas ideias surgem, com ilustrações, paráfrases ou desdobramentos para os conceitos formulados.    
       Mas a definição tem seus riscos. Um deles é o autor apresentar conceitos imprecisos. Outro é aprisionar o termo definido numa grade conceitual que o limita, pois sempre que definimos alguma coisa deixamos de lado atributos que também podem caracterizá-la.
           Numa redação sobre o relacionamento dos casais no mundo moderno, um aluno escreveu: “O ciúme é um conjunto de reações desencadeadas pela ameaça à estabilidade ou à qualidade de um relacionamento”.
         Por esse ponto de vista, o que provoca o ciúme é a “ameaça à estabilidade ou à qualidade do relacionamento”. Além de restrita, a definição é falha no sentido de que descreve não o sentimento, mas o efeito que ele provoca. Ameaça à estabilidade ou à qualidade de um relacionamento é mais produto do que causa do ciúme, que deriva de outras complexas razões.     
        O risco de definir é grande quando se conceituam termos científicos ou filosóficos. É preciso conhecer bem o que o termo significa para não cometer imprecisões como esta: “A filosofia existencialista defende que o homem é produto do meio em que está inserido.”
       O aluno mistura as bolas, pois o existencialismo nada tem a ver com o determinismo. A ideia de que o homem é condicionado por fatores como herança, meio e momento se opõe radicalmente à visão de mundo existencialista. Para ela o ser humano é fruto da sua liberdade; faz seu destino a partir de escolhas livres, que se fundamentam na consciência. Nada menos determinista do que isso.
         Outro exemplo de imprecisão se encontra nesta passagem de um texto sobre a relação entre autoestima e sucesso pessoal: 
         “A autoestima é a análise subjetiva de uma pessoa sobre si mesma. Muitas vezes ela acaba sendo erroneamente relacionada ao sucesso pessoal. No entanto, podemos verificar que a autoestima depende de três fatores: do reconhecimento dado às atitudes, do sentimento de ser amado e principalmente do amor-próprio.”
         Não dá para esperar muito de um texto quando o autor não sabe o que um dos componentes do tema significa. Desde quando a autoestima é a “análise subjetiva de uma pessoa sobre si mesma”? Longe de se constituir numa análise, ela é uma medida de afeição; traduz o grau de apreço que cada um tem por si. Segundo Freud, “mede o tamanho do ego”.
          Ás vezes a definição está correta quanto ao sentido, mas tropeça no aspecto formal. É o que ocorre neste início de redação sobre desenvolvimento sustentável: “Sustentabilidade é quando o desenvolvimento econômico preserva os recursos naturais”.
          Um dos requisitos para definir corretamente é que o termo definido e o que se afirma sobre ele sejam da mesma classe. Sustentabilidade é um substantivo; logo, não pode equivaler a uma oração temporal. Só nas chamadas definições conotativas, próprias da linguagem poética, pode-se dizer que “alguma coisa é quando...”. O aluno teria produzido uma formulação razoável (embora ainda incompleta) se tivesse escrito, por exemplo, que “sustentabilidade é um modelo de desenvolvimento econômico que preserva os recursos naturais”. 

Um escorrego de morfologia

        A frase abaixo foi retirada de uma matéria da IstoÉ sobre um medicamento contra a impotência:    
       “Por ser ingerido diariamente, não é preciso calcular quando ter relação (os outros remédios exigem um tempo para fazer efeito).”
         Li críticas de professores de português à flexão do verbo “ter” nessa passagem. Dizem que a forma correta é “tiver”, pois ele estaria empregado no futuro do subjuntivo. Um dos que defendem esse ponto de vista escreve: “Este (o futuro do subjuntivo) participa de orações iniciadas pela conjunção ‘se’ (condição hipotética futura) ou pela conjunção ‘quando’ (tempo hipotético futuro).”
         A explicação seria correta se o vocábulo “quando” naquele contexto fosse mesmo conjunção. Ou seja: se a oração iniciada por ele se classificasse como adverbial temporal. Não é isso que ocorre.
       Vejamos por quê. O autor da matéria se refere a um medicamento que, ao contrário de outros com o mesmo fim, pode ser usado todos os dias. Essa frequência traz uma vantagem ao usuário: não precisar calcular o momento adequado para ter relação. Tal vantagem não existe em drogas similares, que “exigem um tempo para fazer efeito” e, consequentemente, determinam que os usuários escolham a melhor ocasião de tomá-las.  
  Assim, a palavra “quando” naquela frase não é conjunção, mas advérbio. Introduz oração objetiva direta, na qual exerce função sintática. Considerar a oração indicada pelo “quando” como temporal deixaria sem complemento o verbo “calcular” e sem sentido a frase (calcular o quê?). De fato, o autor não quis dizer que se precisa calcular “alguma coisa” no momento de ter relação; esse momento (ou seja, o “quando”) é o próprio objeto do cálculo.
Nesse tipo de construção a oração objetiva se diz justaposta, pois é introduzida por um termo que, ao contrário da conjunção, exerce função sintática. Além de “quando”, podem aparecer outros advérbios ou locução correspondente. Por exemplo:
- “não é preciso calcular como ter relação” (modo)
- “não é preciso calcular onde ter relação” (lugar)
- “não é preciso calcular quanto ter relação” (intensidade)
- “não é preciso calcular por que ter relação” (causa)
O infinitivo, nesse caso, constitui o verbo principal de uma locução com auxiliar modal implícito (poder ou dever): “não é preciso calcular quando (se pode ou deve) ter relação”.
Enganos como o acima referido mostram o perigo de classificar vocábulos ou orações sem atentar para o sentido da frase. Resultam de um hábito por vezes comum no aprendizado da língua, que é o de decorar classes de palavras. Quem faz isto parece esquecer que elas se definem de acordo com o contexto.

Augusto dos Anjos no Enem

A questão 97 do Enem 2014 (prova rosa) tem no suporte o soneto “Psicologia de um vencido”, de Augusto dos Anjos. Transcrevemos abaixo a composição e a seguir fazemos um breve comentário das alternativas propostas pela banca:  
            
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis  da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,                 
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos, cujo centenário de morte se comemorou no último 14 de novembro, é um dos autores mais originais da nossa literatura. Morreu em Leopoldina (MG), cerca de três meses após haver deixado o Rio de Janeiro. Tinha ido morar no Rio a fim de publicar o “Eu”, seu livro famoso.  
Antes de chegar a Leopoldina ele peregrinou à procura de emprego, ensinando em várias escolas e dando aulas particulares. Na cidade mineira encontrou enfim estabilidade econômica e paz para continuar produzindo sua obra, mas essa situação durou por pouco tempo. Numa manhã chuvosa o poeta compareceu resfriado ao enterro de um dos patriarcas da cidade; voltou gripado e ainda assim deu aulas à tarde e à noite. O resultado foi uma pneumonia, que viria a matá-lo algum tempo depois.  
Em “Psicologia de um vencido” aparecem algumas das principais características da sua poesia, como o uso de termos científicos (carbono, amoníaco, epigênesis) o gosto pelos superlativos (profundissimamente), a tendência à morbidez (hipocondríaco, cardíaco) e a obsessão pela morte (verme, frialdade).
O poeta escreveu entre o fim do século XIX e o início do século XX, quando em nossa literatura coexistiam manifestações realistas, parnasianas e simbolistas. Na Faculdade de Direito do Recife, onde estudou, ele tomou contato com as ideias científicas advindas do Positivismo. Leu Augusto Comte, Herbert Spencer, Ernst Haeckel e outros mais que exaltavam a matéria e negavam ao ser humano qualquer dimensão transcendente. Segundo a visão positivista o homem era regido por leis fisiológicas, mecânicas, e nisto não se distinguia dos outros animais.
O “Eu” é sobretudo uma resposta agônica e desesperada a esse ponto de vista. O poeta se rebela contra o Filósofo Moderno (positivista), que traz “no deserto das ideias/ o desespero endêmico do inferno”. E procura enxergar no ser humano algo além do “horror dessa mecânica nefasta/ a que todas as coisas se reduzem”.        
Diante disso, os vocábulos científicos não entram na poesia de Augusto “para restituir a visão naturalista do homem”, conforme se diz na alternativa c. Entram como ingredientes para recriações simbólicas e suporte para figuras fônicas (assonâncias, homofonias, aliterações). São um componente fundamental da expressividade a que a banca faz referência na alternativa d (como se sabe, a correta).
Vocábulos científicos e termos coloquiais concorrem para afastar o poeta da musicalidade fluida e das imagens “sublimes” comuns na escola simbolista, que se preocupa em traduzir o Inefável (ou seja, o indizível). Assim, também não está correta a alternativa b, pois não existe no paraibano nenhum “empenho (...) pelo resgate da poesia simbolista”. Ele parte do Simbolismo para incorporar elementos de modernidade à sua obra. Substitui os termos raros e nobres, que aproximam os artistas da arte pela arte, por um vocabulário cotidiano, trivial e às vezes de mau gosto.
A alternativa e também não está correta. Nela se diz que a poesia do paraibano é descritiva e incorpora valores morais e científicos depois renovados pelos modernistas. O descritivismo, sobretudo pelo que tem de exterior, está mais ligado à estética parnasiana (e também ao detalhismo próprio da investigação científica). Em Augusto dos Anjos a representação da natureza se dá a partir de um mergulho nas forças obscuras que promovem o desenvolvimento da matéria rumo à consciência. É impossível proceder a essa representação ficando num plano apenas descritivo, ou seja, destacando a superficialidade dos objetos.
O que também torna incorreta essa alternativa é a afirmação de que houve por parte dos modernistas a preocupação em “renovar valores morais e científicos”. Os modernistas não tinham propósitos moralizadores; procuravam, com bastante independência de espírito, se opor à tradição e incentivar a pesquisa estética. 
A alternativa a, por fim, está errada porque Augusto dos Anjos não é considerado um poeta de transição por haver praticado o soneto e fazer versos metrificados e com rima. Tais recursos constituem, na verdade, marcas tradicionais da sua poesia e até o fizeram ignorado pelos modernistas. A novidade do paraibano, entre outras inúmeras e complexas razões, estava no uso de um vocabulário até então limitado à prosa e do qual parecia impossível extrair efeito poético.
Esse prosaísmo, aliado a uma visão bastante singular dos homens e de sua relação com a natureza, transformou o autor do “Eu” num “caso” que vem desafiando os estudiosos e fascinando o leitor comum. 

Eufemismo e hipossemia

O oposto da hipérbole não é o eufemismo. Essas figuras não se contrapõem, pois situam-se em áreas diferentes. A hipérbole diz respeito ao “pathos” (paixão), enquanto que o eufemismo está ligado ao “ethos” (caráter).
Quem produz uma hipérbole o faz abalado por forte impressão emocional. Exagera para comover e suscitar empatia: “estou morto de fome”, “ele tem uma vontade de ferro” (hipérbole metafórica), “daria a minha vida por você”.
Um exemplo de hipérbole aparece nesta quadra de Augusto dos Anjos:

                No tempo de meu pai, sob estes galhos,
                Como uma vela fúnebre de cera,
                Chorei bilhões de vez com a canseira
                De inexorabilíssimos trabalhos.

         Os versos constam do soneto “Debaixo do tamarindo”, em que o poeta confessa o seu amor pela árvore que ensombrava a casa-grande do engenho onde nasceu. Revelam o desespero diante da morte e a esperança de continuidade pela fusão com o organismo vegetal (lê-se no final do poema: “Abraçada com a própria Eternidade/ A minha sombra há de ficar aqui!”).
         A referência ao pranto “bilhões de vezes” chorado e aos “inexorabilíssimos” trabalhos busca traduzir a intensidade de uma Dor que transcende a esfera pessoal. Não é apenas o sofrimento de um indivíduo, mas de toda a espécie humana, com a qual o eu poético se identifica.
No eufemismo, atenuamos um conteúdo desagradável com a intenção de não ferir nem chocar. O que anima esse propósito é a ética, o recato, por vezes a conveniência social. Podemos dizer de alguém muito feio, por exemplo, que “seus traços não são harmoniosos”. Ou, de uma pessoa estúpida, que ela “não tem um cérebro brilhante”. O eufemismo preserva o conteúdo e suaviza a forma.
O seu oposto é o disfemismo, que consiste no uso de expressões deselegantes, grosseiras ou chulas. Na versão disfêmica, o muito feio passa a “horrendo”, “um parto”, “um frankenstein”. O pouco inteligente é chamado de “anta”, “burro”, “quadrúpede”. O disfemismo é uma intensificação pejorativa e visa agredir ou chocar.
      Num texto sobre a dependência aos outros, Adriano Silva critica os que nada fazem sem escutar a opinião alheia e são capazes de perder o dia caso não recebam um sorriso de aprovação. Diz invejar os indivíduos autossuficientes, que “resolvem suas inseguranças (...) sem expor o traseiro nu na janela”. Essa referência ao “traseiro nu” é uma imagem disfêmica; por meio dela o autor deprecia os que se deixam devassar, abrindo desnecessariamente aos outros a própria intimidade.
O contrário da hipérbole é a hipossemia, que se caracteriza pela diminuição do valor significativo das palavras. Ocorre hipossemia, por exemplo, quando alguém afirma ter sentido “uma dorzinha” que o levou ao hospital; quando a mãe ameaça dar “umas palmadas” no filho; ou quando o ricaço diz que deu “um pulo” na Europa para saber as novidades.
                                                                                

Fique atento aos tópicos das sentenças

        O tema da redação era o rolezinho. Depois de uma introdução correta, na qual explicou em que consistiam esses encontros, o aluno escreveu no primeiro parágrafo do desenvolvimento:
         “É natural que esses garotos busquem o espaço privado dos shoppings, pois além de ser um local valorizado por nossa sociedade centrada no consumo, as cidades brasileiras sofrem com a falta de infraestrutura urbana.”
        O período apresenta falhas de concordância (os shoppings são locais) e de pontuação (o atributo “centrada no consumo” tem caráter explicativo, e não restritivo; deveria, por isso, estar antecedido de vírgula). O que ele tem de mais grave, contudo, é uma quebra de unidade ligada ao abandono do tópico sentencial.
        Esse tópico é o tema ao qual as informações de uma sentença se referem. No fragmento do aluno ele está representado pelos “shoppings”, ou melhor, pela preferência que os rolezeiros têm por esses locais para realizar seus encontros. Ao tentar explicar isso o aluno pospõe à conjunção explicativa a locução “além de”, dando a entender que vai apresentar duas justificativas.
         A primeira é a de que os shoppings são locais valorizados pela sociedade. E a segunda?... É aí que ocorre a quebra: em vez de continuar se referindo ao tópico, o estudante apresenta um novo sujeito (as cidades brasileiras). Isso quebra a expectativa do leitor, que esperava alguma coisa do tipo: “...pois além de serem locais valorizados por nossa sociedade, centrada no consumo, os shoppings têm uma infraestrutura que as sofridas cidades brasileiras não têm”.
        Exemplo parecido ocorre nesta outra passagem: “Com a certeza da impunidade, em vez de seguirmos as normas como foram propostas, a cultura do famoso jeitinho vem se difundindo e tornou-se louvável.”
          A ideia do aluno é a de que a certeza da impunidade estimula entre nós a prática do “jeitinho”. Se temêssemos as punições, trataríamos de seguir as normas. Esperava-se que na última oração ele continuasse falando de nós, brasileiros. Em vez disso, introduz como sujeito “a cultura do famoso jeitinho.”    
       O texto teria mais clareza se o sujeito fosse mantido: “Com a certeza da impunidade, em vez de seguirmos as normas, vimos difundido a cultura do famoso jeitinho, que se tornou louvável.”
          No trecho seguinte, a ruptura ocorre entre dois períodos:
       “A ONG Nova Vida trata a espiritualidade dos viciados com muita atenção, o que, segundo os jovens, os auxilia a enfrentar os desafios após a saída do centro. Além disso, são oferecidas aos internos aulas a fim de que eles estejam preparados para o mercado de trabalho.”
         O tópico é “a Ong Nova Vida”, elogiada pela forma como trata os viciados. Era natural que no segundo período se continuasse falando dela. Em vez disso, aparece como sujeito “aulas”. Como se não bastasse, o aluno optou pela voz passiva, o que também concorreu para romper a unidade.
        Na refeitura, a manutenção do tópico implica o restabelecimento da voz ativa:
 “A ONG Nova Vida trata a espiritualidade dos viciados com muita atenção, o que, segundo os jovens, os auxilia a enfrentar os desafios após a saída do centro. Além disso, oferece aulas aos internos a fim de que eles estejam preparados para o mercado de trabalho.”
         A dica, então, é escrever de olho nos tópicos das sentenças. Quem ganha com isso é o leitor. 

sábado, 1 de outubro de 2016

Concisão -- o menos vale mais

       “Quem muito fala muito erra” – diz o ditado. E quem muito escreve, além de também correr o risco de errar, tende a se perder no excesso de palavras. O exagero dessa tendência constitui a verborragia, ou seja, o ato de escrever demais e expressar um mínimo de ideias.
        O oposto da verborragia é a concisão, que se define como a economia de palavras. O poeta Jose Paulo Paes destaca essa qualidade em “Poética”:
Conciso? Com siso // Prolixo? Pro lixo.” Jogando com os homônimos, ele afirma que o que é escrito com poucas palavras revela sensatez. E o que tem palavras em excesso (prolixidade é a “demasia ao falar ou escrever”) deve ir para o lixo. O poeta pratica o que defende, pois seu poema não tem mais do que dois versos.
      Um dos maiores desafios para quem escreve é eliminar o entulho verbal. Às vezes o autor tem que escrever duas ou mais versões do texto, sempre cortando, para chegar à simplicidade e à clareza que garantem a comunicação.
      Um dos excessos por vezes encontrado nas redações é a duplicação de palavras. Parece que usar apenas um verbo ou um substantivo não satisfaz. É preciso emparelhá-lo com outro, embora nem sempre o resultado seja bom.   
      Por exemplo: “Necessitamos de medidas para preservar e cuidar do ecossistema”, “O trabalho estimula e eleva o amor-próprio”, “Nosso sistema carcerário limita e inibe a reintegração do preso à sociedade”, “Os pais precisam orientar e dirigir os filhos”, “É preciso manter a atenção e o foco nas metas”, “O professor deve estimular a solidariedade e a união do grupo”.
      O propósito dos alunos é dar ênfase, mas o que eles conseguem é o oposto. Um dos termos, por nada acrescentar ao outro ou estar nele contido, acaba enfraquecendo-o. Na correção deve-se cortar o que tem menor peso semântico. Basta dizer: “Necessitamos preservar o ecossistema”. É impossível preservar sem cuidar; logo, o segundo verbo está sobrando. Isso vale para todos os pares apresentados no parágrafo anterior. Se o leitor tem dúvida, faça o teste.
            O valor da concisão se revela especialmente nos provérbios. Eles resumem a sabedoria popular e devem parte do seu “caráter sentencioso” à forma condensada. Já imaginaram enunciar os provérbios de outra maneira? Desmembrá-los, preservando o conceito e deixando de lado a forma? O conhecido “Quem não tem cão caça com gato”, por exemplo, ficaria mais ou menos assim: “Aquele que não dispõe de um mamífero carnívoro da família dos canídeos persegue animais silvestres para caçar ou matar com um pequeno mamífero carnívoro, doméstico, da família dos felídeos.”
         Reescrever provérbios é um bom exercício para avaliar o efeito da concisão. De quebra, tem o mérito de levar a que se consulte o dicionário. Leia a reescrita que fizemos de algumas conhecidas sentenças populares e compare, no final, como a formulação sintética aumenta o impacto sobre o leitor:
1) Cada espécime dos primatas deve permanecer na subdivisão do caule de uma árvore ou arbusto que lhe é devida.
2) O Todo-Poderoso presta assistência aos que antes da ocasião própria levantam da cama ao alvorecer.
3) Quem sente grande afeição por alguém de aparência desagradável, desproporcional ou disforme, terá a impressão de que essa pessoa lhe suscita prazer estético.
4) Cada indivíduo cujo comportamento ou raciocínio denota alterações patológicas das faculdades mentais cultiva seus hábitos peculiares e obsessivos.
                                                                                        
     Provérbios: 1) Cada macaco no seu galho. 2) Deus ajuda quem cedo madruga. 3) Quem ama o feio, bonito lhe parece. 4) Cada louco com sua mania.